por Jorge Forbes
Sorteio, doença, acidente, glória repentina, viagem inesperada, enfim, mudanças rápidas de status são uma ameaça para a identidade. A identidade humana é frágil, flexível, responde ao ambiente, para o melhor e para o pior. Se nos compararmos com os animais, fica fácil perceber que uma vaca é sempre uma vaca, assim como as formigas, as abelhas, os macacos. Animais não duvidam, sempre sabem o que fazer, e o que fazem é sempre o mesmo. Humanos chegam a invejar os animais querendo copiar seu método infalível de serem sempre iguais. É o que explica o sucesso de filmes como o “A marcha do Imperador”, que mostra a forma de pinguins atravessarem sem erro a vastidão branca do ártico. Esse filme foi passado em várias empresas para “inspirarem” o comportamento dos executivos. Que fria!
Em nossa sociedade, o setor no qual esse fenômeno de desestabilização da identidade é mais aparente é no futebol. Em muito pouco tempo um rapaz pode passar de ´a´ a ´z´, como por exemplo do anonimato e da dificuldade econômica, à fama e à fortuna. Chocado pela mudança brusca, a pessoa não se reconhece, é como se perdesse a bula de viver, em seus mais variados aspectos, tal quais: como amar, como andar, como ser amigo, como cumprimentar, como comer, como se educar. Aflito, essa pessoa sai atrás de uma nova cara para si mesma, de uma identidade que responda à sua nova situação. Acaba encontrando no balcão das máscaras prontas para vestir – é a base do que chamamos um “mascarado”. Para seu azar, as máscaras não resolvem a angústia da desestabilização da identidade, que continua incomodando tal qual uma espinha debaixo da unha. No caso da glória súbita o que angustia, contrariamente ao bom senso que levaria a pensar que aí tudo é felicidade, o que angustia é a sensação oceânica de expansão egóica, do tudo pode. Quando o “tudo pode” se instala traz junto a indefinição das fronteiras corporais, do limite: do quem sou eu, do quem é você. É nesse momento que uma pessoa fica mais suscetível a que algo ruim lhe ocorra. Pode ser um desastre, uma briga, um crime, uma doença grave, enfim, alguma coisa que dê um basta ao sentimento insuportável da ilimitação de si mesma.
Como tratar? Existem duas formas básicas de tratamento: um tradicional, que envelheceu, e um novo, que começa a ser aplicado. O tratamento tradicional é o de gerar “boas máscaras”, propor formas corretas de se comportar. É o que ocorre quando se vai buscar símbolos encarnados em pessoas, em valores, em instituições, para que alguém “corretamente” se aliene. Já falei do filme dos pinguins, poderia também dar o exemplo do filme “Tropa de Elite” que fez tanto sucesso, e do qual se aguarda a continuação, e que, entre outras, trata de como criar um grupo em torno a uma idéia única. Ele também foi projetado em empresas, ensinando aos funcionários descontentes o “Peça para sair” – refrão repetido nos treinamentos da idealizada tropa. Por que dizer que esse procedimento envelheceu? Porque ele se baseia em uma sociedade que estabelecia laços sociais verticais: na família, no trabalho, na sociedade civil. A sociedade globalizada, que habitamos hoje, não é vertical, mas horizontal. As relações não se estabelecem mais em torno a um bem maior, mas em torno a uma multiplicidade de escolhas de seus participantes. Nesse caso, será que estaríamos condenados à dispersão, ao cada um por si? Não é o que temos verificado: a explosão da promiscuidade sexual, por exemplo, que muitos temiam que ocorresse, dada a quebra dos mecanismos verticais de controle, como a força paterna, não ocorreu. Cientistas das humanidades constatam que uma nova forma de organização já está em funcionamento e que devemos aprender a reconhecê-la para poder trabalhar com ela.
Tomemos o caso mais frequente da equipe de futebol. A imprensa tem noticiado insistentemente os problemas vividos por jogadores e seus clubes, em decorrência dos aspectos que estamos analisando aqui: sucesso e crise. Assistimos a busca aflita de dirigentes de por ordem na “bagunça estabelecida entre os atletas” – conforme uma declaração recente. Tentam de tudo: chamar os pais, dar corretivos, multas, suspensões, maior tempo de concentração, aula de religião, de civismo, enfim, despencam todo um arsenal de ordens morais, com pífios resultados. Em vez disso, em vez de insistir, como antigamente, fazer dos diferentes, uma unidade comum, um exército de pinguins, melhor será legitimar as diferenças e mostrar para cada um a responsabilidade individual de participar de um grupo no qual as diferenças são enormes: de ganho, de projeção e de futuro. Isso pode parecer impossível, mas não é. O psicanalista Jacques Lacan visitou a Inglaterra logo depois do final da segunda guerra mundial, com um interesse preciso: o de saber como um grupo tão combalido – o exército inglês – tinha sido capaz de vencer a mais bem planejada máquina de guerra do mundo moderno, o exército alemão. Foi conversando com os psiquiatras ingleses que ele aprendeu as bases de como fazer um grupo de diferentes perseguir o mesmo objetivo, por um certo tempo. A resposta poderia assim ser resumida: a. não escamotear as diferenças; b. mostrar que no mundo atual a liberdade de um só é possível com a liberdade do outro (não como se dizia, antigamente, que a liberdade de um começa, onde termina a do outro); c. que a responsabilidade individual é fruto da vergonha/honra e não do temor do castigo; d. que a referida fragilidade da identidade humana é o que explica a sua criatividade e invenção, e que, finalmente; e. o futebol é um dos principais laboratórios de uma sociedade que articula talentos individuais com jogo grupal – razão do seu fascínio.
Artigo publicado em “Psique – Ciência e Vida”, n° 57, Setembro de 2010.