NOTA PRÉVIA
O IPLA-Instituto da Psicanálise
Lacaniana tem se dedicado a pesquisar as modificações subjetivas e do laço
social, na pós-modernidade. Essas pesquisas se baseiam na Clínica do Real, de
Jacques Lacan, para uma psicanálise do Século XXI, uma psicanálise do “Homem
Desbussolado”.
Nesse caminho, temos desenvolvido
estudos e pesquisas teórico-clínicas dos efeitos do confronto da psicanálise
com a revolução NBIC. Essa sigla, ainda pouco conhecida, em breve será muito
debatida. Ela se refere a quatro revoluções tecnológicas que se alimentam
sinergicamente: Nanotecnologia, Biotecnologia, Informática, Cognitividade,
criando um futuro impactante, chamado por alguns de transumanismo (outra das
novas palavras).
Publicaremos, a partir de hoje,
nesta Newsletter, algumas notas desse estudo em andamento no IPLA e no Projeto
Análise.
São Paulo, 3 de dezembro de 2015
Jorge Forbes
Transumanismo, transgressão em grande velocidade …
Alain Mouzat
Interessados pelos rumos que estão tomando as subjetividades
frente aos avanços da tecno-medicina, estamos estudando, no Projeto Análise, com
Jorge Forbes, o livro La mort de la mort,
de Laurent Alexandre. Vou tratar aqui do primeiro capítulo que introduz a
problemática da terceira parte, intitulada Crônica
de uma vitória anunciada da biotransgressão.
Esse capítulo intitulado “A TGV ou Transgressão em grande
velocidade”, numa alusão aos trens, aponta o nó da questão, que é da ordem
ética.
Para acompanhar o movimento do texto podemos resumir as duas
primeiras partes intituladas O geno-tsunami se aproxima e Tecnomedicina, uma necessidade mais do que
uma escolha: estamos vivendo a chegada de uma onda de tecnologias e de
avanços científicos que vai mudar profundamente nossas vidas, não sabemos como,
mas sabemos que vai permitir quase o impossível, viver para sempre em boa
saúde. Ainda bem, porque do modo como
vão as coisas precisamos da ciência para salvar o homem: não podendo mais
contar com a seleção natural cujos efeitos trabalhamos para desfazer,
precisaremos consertar nosso patrimônio genético que dilapidamos.
Dito de outro modo, hoje a ciência não anda como
antigamente, como a ciência do vovô, que andava rumo ao progresso: descobria-se
uma vacina e salvava-se a humanidade de um flagelo, rumo a um bem-estar maior
para humanidade, como o fez Pasteur. Hoje as tecnologias NBIC – Nanotecnologia,
Biologia, Informática e Ciências Cognitivas – oferecem um arsenal de
possibilidades que não são atreladas a um ideal de progresso: a máquina da ciência está desgovernada,
produz a todo vapor, cega, é uma situação que já foi apontada tanto por Hans Jonas
(Princípio Responsabilidade) que por de
Christian de Duve (Genética do pecado
original). Resultado: temos à
disposição uma gama de possibilidades jamais vistas e teremos cada vez mais, e
– segundo ponto – não temos mais um
único rumo para tantas possibilidades.
Uma coisa é certa, não podemos contar com nossa sabedoria, o
homem sempre usou pelo bem ou pelo mal suas descobertas. Corremos grande
perigo. Pensar que o homem fará um uso comedido das tecnologias e não se arriscará
no excesso, por exemplo das possibilidades de manipulação do DNA é uma ilusão. Cada
vez mais vamos ser tentados ousar, usar e no final exigir recorrer a essas
possibilidades que sabemos estar à disposição: “sabemos, e não podemos
desaprender a saber”, diz o autor.
A terceira parte visa portanto a mostrar como, o fato de recorrer
a essas possibilidades – que a priori nos
assustam, – vai se tornar cada vez mais
uma reivindicação, e até aparecer como um direito do cidadão.
O limite ético do DNA intocável parece já ameaçado. A
perspectiva de manipulações genéticas assusta e mobiliza os “bioconservadores”.
Mas, lembra o autor, a história mostra que frente aos avanços da ciência, as
proibições nunca resistem muito tempo:
Alexandre vai citar a grande resistência contra a vacinação
da varíola – aqui no Brasil, teve a
revolta da população do Rio de Janeiro em 1904 contra Oswaldo Cruz, – as
conquistas na França com a contracepção (a pílula) e a IVG – interrupção voluntário
de gravidez, isto é a legalização do aborto – lembrando que a oposição podia
vir tanto da esquerda quanto da direita. Foi o mesmo combate quanto à evolução
das mentalidades para a união civil (PACS) ou a fecundação in vitro.
É o caminho do proibido,
ao tolerado, depois ao permitido, para chegar ao obrigatório…
Mas hoje temos um cenário diferente:
– o ritmo das evoluções é muito
mais rápido;
– ele é ditado pelas novas
tecnologias biomédicas.
Portanto, a derrubada das interdições se acelera, estimulada
pela oferta.
Os exemplos de aceitação do que foi outrora proibido, e que Laurent
Alexandre chama de “transgressões hoje consideradas como normais” não faltam.
Os implantes cocleares, que são implantes que simulam a
percepção auditiva biológica, mandando sinais para o encéfalo, e da mesma
forma, os implantes retinianos para compensar a degenerescência da mácula, são
alguns. Outras soluções como a das células-tronco não são para hoje. Mas – e
aqui só podemos concordar pela nossa experiência no Centro de Estudos do Genoma
Humano da USP – as famílias estão à espera de tratamento, com impaciência. E
não falta candidato a experimentar tratamento, mesmo que seja experimental
(Lembrando aqui a tentação que é para os portadores de deficiência o perigoso tratamento,
oferecido na China, de injeção de célula-tronco, por exemplo. E a Dra. Mayana Zatz já mencionou várias vezes a
dificuldade em convencer os pacientes a não fazerem aquilo).
O Dr. Alexandre vai também evocar os diversos transplantes
que começaram nos anos 60: de coração, de rins, fígado e mesmo de rosto.
A eutanásia é atualmente o terreno mais escorregadio, na
Europa, e na França, onde houve diversos processos contra médicos que ajudaram
pacientes terminais a morrer, ou famílias católicas que obtiveram da justiça a
manutenção da vida do filho com morte cerebral.
A situação é complexa na Europa, alguns países aceitando o suicídio
assistido, como a Bélgica. Aliás, é interessante saber que o Prof. Christian de
Duve, católico praticante escolheu morrer dessa forma. “Eutanásia ativa”, “eutanásia
passiva”, “suicídio assistido”, a multiplicação das formas legais mostra
claramente a dificuldade em aceitar essas práticas. E a proibição parece só
servir para favorecer práticas comerciais – assim a Suíça oferece uma forma de turismo
eutanásico – como aqui no Brasil a proibição do aborto serve para fomentar clínicas
ilegais e práticas sórdidas.
Mas limite o mais delicado é sem dúvida o da manipulação
genética da vida: o eugenismo.
O subtítulo não deixa dúvida: o “eugenismo já está aí”. De
fato, se pratica o eugenismo de diversas formas, podendo-se até entender que as
campanhas dos higienistas do século XIX e do XX eram uma forma de eugenismo. Hoje ele toma formas diferentes: assim, a
forma do “bebê medicamento” – filho gerado a partir de um embrião escolhido para
poder tratar a doença de um irmão mais velho – coloca perguntas:
como será um filho que souber que foi gerado para tratar o irmão? (Acho
estranho, em contrapartida, que ninguém levantou perguntas quando na França se
fez campanha para o terceiro filho, para aumentar a família, oferecendo
prêmios: poderíamos também questionar o que o filho vai pensar por ter sido
gerado para ajudar a pagar a reforma da casa…)
A prática do Diagnóstico Pré-Implantacional, já é uma prática que
permite evitar doenças declaradas, mas também predisposição para certas
doenças… É iminente a comercialização de Kit de DPI com mais de 1500 doenças.
Quando poder-se-á escolher o sexo, a cor dos olhos, o QI, etc…. ?
Estamos prontos a aceitar o eugenismo se ele
permite evitar que nasça uma criança portadora da síndrome de Down – e até
temos tendência a não entender mulheres que, como Sarah Palin, quiseram ter seus
filhos mesmo sabendo que seriam portadores da doença. Alexandre comenta: rapidamente não vemos mais a biotransgressão,
ela se banalizou.
Por que a
transgressão se banaliza, não choca mais?
É que, diz Alexandre, as novas gerações foram alimentadas na
transgressão.
Particularmente, em três assuntos: câncer, Alzheimer e
doenças graves da criança, podemos esperar ver cada vez mais facilmente a
aceitação das transgressões.
Os assuntos por certo mobilizam, mas particularmente vão
encontrar novas gerações acostumadas a não se embaraçar por escrúpulos morais
quando se trata de obter resultados que consideram eticamente importantes. É a
geração Y, que cresceu nos jogos vídeo, Internet, efeitos especiais high-tech,
compartilhamentos de dados, envolvida nas redes sociais, que não hesita em
piratear, que perde, pela convivência com o virtual, o temor das barreiras, das
hierarquias, da verticalidade. Torna-se “descomplexada”.
Para a análise dessas novas gerações, o autor vai fazer aqui
uma referência a Maffesoli (p. 228): é um sociólogo, da Universidade, mas
considerado intuicionista, marcado por polêmicas como a tese de uma astróloga
Elizabeth Tessier. A derrapada se explica pela posição teórica de Maffesoli. Autor
de diversos livros como Homo Eróticus, que anuncia a cultura tribal das novas
gerações, ele é considerado amigo de Luc Ferry, de quem diverge em alguns
pontos que veremos a seguir.
A sociedade moderna, diz Maffesoli, se construiu em três
valores: o progresso, o valor trabalho e o racionalismo. A noção de progresso
se inscreve numa perspectiva moralista que visa a adiar a satisfação (uma forma
de paraíso laico), a renunciar a satisfação aqui e agora, para usufruir depois.
A ciência, escolhendo o caminho do racionalismo, deixou de lado um caminho, que
é o caminho do imaginário, da razão sensível.
O advento da pós-modernidade fecha o parêntese moderno, os
valores republicanos de universalismo se esfacelam: o valor trabalho é
substituído pela criação, ao progresso para amanhã prefere-se o presente, e ao
racionalismo, a razão sensível.
Contrariamente a Ferry que vê na transmissão da cultura a
possibilidade de manter um norte, um parapeito, frente à invasão dos objetos a proporcionada pela sociedade
globalizada, Maffesoli é mais radicalmente favorável a confiar na subjetividade
que se instala, não egocêntrica, mas alterocentrista, nas comunidades virtuais,
com o corpo marcado que exibe seu pertencimento à tribo. Diz ele, “é debaixo do olhar do outro que me
constituo. Penso, menos do que sou pensado. ”
Afinal, Maffesoli vê a realização da noosfera, tal como a pensava
Teilhard de Chardin, uma comunidade de pensamentos que agem em relação com o
outro.
Uma civilização do jogo, uma filosofia do fun (do curtir), diz Alexandre, vai
acelerar a evolução das mentalidades, e a aceitação social das biotecnologias
só vai se acelerar. Da mesma forma que o mundo moderno recorreu à ciência para
domesticar a natureza, “Vou domesticar meu DNA” vai ser o lema dessa nova
geração.
Considerações finais, como dizem os universitários:
A ideia de transgressão é de fato uma idéia ligada ao
interdito, ao universal, à lei do pai, ao gozo fálico.
O mundo pós-moderno tal como ele se desenvolve –
horizontalmente, na dimensão do não todo, abrindo ao outro gozo – não é propriamente um mundo de transgressão.
Lacan, quando no Seminário 17, fala de “se faufiler”, traduziria por “gingar”,
seria o que chamamos de savoir-y-faire
com o sintoma.
De certa forma, o Dr. Alexandre está certo, já vivemos essa
biotransgressão há tempo, mas exatamente por isso ela já não aparece mais como
transgressão há tempo. Estamos num outro modo de relação, aprendendo a lidar
com novas subjetividades. Transgressão é “uma palavra lúbrica”, dizia Lacan (Séminaire
XVII, p. 23).
Alain Mouzat é professor da Universidade de São Paulo,
doutor em linguística, e psicanalista membro do Instituto da Psicanálise
Lacaniana