Jorge Forbes
Artigo de 9 de setembro de 1999.
Dos dois lados do Equador, em Escolas da AMP, Escola Brasileira de Psicanálise e Escola da Causa Freudiana, discute-se, nesse ano de 1999, “Palavras e Corpos”. Esse fato aponta um momento de viragem na clínica psicanalítica, tal como ela é pensada e exercida em nosso meio AMP : mudança de uma primeira clínica centrada na interpretação significante, que se apoia no inconsciente estruturado como uma linguagem, para uma segunda clínica, a da captura do gozo, que escapa à estrutura da linguagem, a clínica do real.
O tema palavras e corpos alude a questão maior dessa segunda clínica de Lacan: como capturar o gozo, o real do corpo, pela palavra? Temos interesse clínico em fazê-lo, uma vez que postulamos o final da análise como a retificação do sujeito com o seu gozo.
Essa questão vem sendo progressivamente elaborada em nosso meio, sendo exemplos desse caminho o título de um dos recentes Encontros Internacionais: “O poder da palavra”, inspirado no poeta René Daumal, que buscava não o que a palavra pudesse significar, mas o seu caroço, o seu sabor; e o curso “Orientação Lacaniana”, de Jacques-Alain Miller, que tem se dirigido à experiência do Real na psicanálise.
A nova clínica em discussão acompanha os sinais dos tempos: tempo de globalização, de quebra dos ideais, de achatamento do eixo vertical da identificações, enfim, do homem pós-moderno ou pós-industrial.
Escolhi centrar minha reflexão sobre os adolescentes, por um duplo interesse: primeiro, pensando serem eles os que mais espetacularmente exibem os traços da mudança de paradigma, da era industrial para a da informação. E também, a fim de verificar como estes adolescentes estão encontrando soluções inusitadas para viver um mundo onde o Outro não existe. Observá-los pode nos ser de grande valor se conseguirmos transpor para nossos consultórios a essência das experiências desses jovens.
O adolescente de 99 é diferente do adolescente de 68. Em 68 o adolescente era rebelde, empunhava bandeiras, tinha gritos de guerra, planos de reforma da educação e da sociedade, sonhos, utopias. Havia uma forte presença da organização vertical das identificações: pai, professor, pátria, que justificava a rebeldia. Hoje, temos o “fracasso escolar”; no lugar da antiga contestação, apareceu o menosprezo, o desinteresse pelo saber orientado.
Em 99 o mundo é outro. A globalização desregularizou a ordem social: o pai foi relativizado, os países se uniram em comunidades setoriais: Europa, Ásia, América do Norte, América do Sul; a economia não respeita fronteiras, etc, etc. O menino criado por seus pais nos ideais de escolha, realização e ganho da era industrial, encontra-se com os cacos da indústria. Onde tinha chaminé da fábrica apontando o céu, surge a telinha virtual, jogo de múltipla opção, lego de adulto.
O que fazer: desesperar ou inventar ? Como se inventar uma vida a partir dos cacos e não dos ideais? Vejamos o que se passou em Detroit, cidade industrial por excelência, quando, em 1972, seus habitantes sofreram o baque do fechamento da toda poderosa fábrica da General Motors, pilar da sociedade local. Ocorreu uma revolução: as máquinas que asseguravam o amanhã, partiram. Estava pronto o cenário para o surgimento de uma música representativa de uma nova era – pós-industrial – a techno, a música eletrônica.
Os três pioneiros da música eletrônica foram: Juan Atkins, Derrick May e Kevin Saunderson, que tiveram a idéia de uma nova arte, produto da mistura do que encontravam, dos restos. Declarou May, citado por Guillaume Bara: “Fomos levados a criar esta música inconscientemente. Tiramos a idéia das máquinas e criamos nossos próprios sons. Todos esses sons provinham do universo da mecânica, da indústria, das máquinas, da eletrônica. Do meio que nos criou, de alguma maneira”.
Mix é o nome, cultura mix, de mistura. Nas festas embaladas pela música eletrônica, não é um cantor, ou um grupo musical que atrai a atenção, é o DJ. Esse DJ, antigamente relegado a um papel secundário de escolhedor de músicas, passou à frente do palco. Ele não reproduz, ele toca: na sua frente tem uma mesa com dois, três, às vezes quatro pick-ups de discos em vinil e, com rara maestria, ele mistura os sons. Tanto melhor é o DJ, quanto menos o público percebe que o que está ouvindo é o produto de discos diferentes, tocados simultaneamente. Está aí uma figura tão atual para os analistas, de um homem pronto à circunstância. Para encontrar um ponto de articulação entre as diferentes músicas é fundamental a coincidência do número de batidas por minuto. Aliás, este é um dos principais critérios – o número de bpm – na diferenciação dos estilos da música eletrônica: Garage (+120 bpm), House (+ 130 bpm), Trance (+ 140 bpm), Jungle ou Drum and Bass (+ 180 bpm), etc.
É importante ressaltar que a música eletrônica não tem letra e, quando há voz, esta funciona como nota musical e não significando algo. É uma música que não necessita tradução, não é feita para ser compreendida; é compatível com a época da Internet: cada um encontra aí seu interesse corporal, sem ter que explicar o porque. Não há uma boa razão universal, nenhum ideal unificador.
O crescimento de participantes em eventos de música eletrônica é notável. De alguns poucos duzentos, trezentos, que se reuniam há alguns anos atrás, chegamos aos números milionários de freqüentadores dos carnavais eletrônicos das ruas de Berlim e de Paris, recentemente.
Os adolescentes podem estar sinalizando – é minha hipótese – uma nova forma de apreensão do gozo do corpo, que não passa pelo circuito integral da palavra, pelos métodos habituais do diálogo. Seriam os adolescentes atuais mais mutantes do que rebeldes? Por que não? Talvez não seja mais o caso dos pais aguardarem pacientemente que seus filhos finalmente alcancem sua razão e sabedoria – como fizeram os pais do adolescente/68 – mas de perceberem que há uma forte mudança no ar contemporâneo.
Ao fenômeno atual da música eletrônica podemos somar o crescimento espantoso dos esportes radicais. Nunca se praticou tanto alpinismo, asa-delta, canoagem, down-hill em bicicletas, etc. Podemos também aí notar novas tentativas diretas – fora da palavra – de apreensão do real do corpo, da morte, em uma sociedade que se desritualizou, que não oferece mais elocubrações coletivas sobre os limites, sobre a morte. Afinal, não vai assim tão longe o tempo do respeito constrito aos quarenta dias da quaresma. Não importava se a pessoa era ou não católica – ninguém passava indiferente àquelas semanas quando era proibido comer carne, celebrar casamentos, usar roupas coloridas.
A globalização, a queda dos ideais e da ordem masculina, abriu a possibilidade ao curto-circuito da palavra, para o pior e para o melhor. Para o pior notamos o aumento das doenças que chamaria de “doenças do curto-circuito da palavra”: os tóxicos, a delinquência despropositada, o fracasso escolar, as afecções psicossomáticas. Para o melhor, surgem inovadoras soluções como as já citadas música eletrônica e esportes radicais.
A época do Outro que não existe, exige um novo analista. Ele não terá que freqüentar festas raves, nem despencar de montanhas, mas deverá saber se posicionar naquele espaço que Lacan aprendeu no Tao, como sendo o do “vide-médian” (vazio-mediano), espaço entre fazer e desejar, entre corpo e palavra, se quiser servir a que seu paciente possa retificar suas relações com o gozo desbussolado desses dias.
Volto à minha esperança do início: talvez conseguiremos transpor para nossos consultórios a essência da experiência desses jovens, no curto-circuito da palavra, tal como Freud um dia conseguiu reproduzir, em sua sala, a invenção da histérica de cura, no circuito da palavra. A palavra que antes dizia, hoje, toca.