Conferência de Jorge Forbes apresentada no 6º Congresso da Associação Mundial de Psicanálise
Buenos Aires, 22 de abril de 2008
Notamos duas correntes entre os psicanalistas no confronto atual da psicanálise com os laços discursivos do século XXI. Uma que privilegia os alertas de não desnaturalização da psicanálise, outra que privilegia as novas possibilidades que se abrem para a psicanálise, exatamente a partir dessas mudanças. Essas correntes não se excluem e motivam essa pesquisa.
Maktoub é um velho e confortável sonho da humanidade: está escrito meu destino em algum lugar, logo, só me resta saber lê-lo e cumpri-lo. Maktoub retira a responsabilidade do sujeito sobre o seu destino.
Dependendo da época, sempre o humano buscou um lugar onde estaria escrita a sua história. Se ontem era nas estrelas, o que o levava, e ainda leva, a consultar astrólogos; hoje é no genoma, no sequenciamento dos genes humanos que ele busca o conforto do Maktoub.
Curiosamente, em entrevista recente, de 13 de abril de 2008, ao jornal O Estado de São Paulo, Craig Venter, um dos mais importantes pioneiros da genômica, contraria a ideologia cientificista ao afirmar: – “Sim, os seres humanos são animais altamente influenciáveis pela genética, mas são também a espécie mais plástica do planeta em sua capacidade de se adaptar ao ambiente. Há influências genéticas, sim, mas acredito que as pessoas são responsáveis por seu comportamento”. Esta afirmação de Venter coincide com a posição da maior parte de geneticistas e os aproxima dos psicanalistas em um ponto fundamental para o desenvolvimento das pesquisas, a saber: não há uma relação biunívoca entre o genótipo e o fenótipo; entre o mapa genético e sua expressão, conhecida como expressão gênica. Existe uma distância que só é preenchida singularmente, não universalmente – em nosso jargão – por objetos a. Temos aí um campo comum aos cientistas, aos psicanalistas e, lembro de passagem, também aos filósofos, como Hans Jonas e seu Princípio Responsabilidade necessário para o pensamento ético atual, exatamente em decorrência das mudanças do laço social na globalização. À quebra de padrões da verticalidade das identificações, nessa nova sociedade de rede, plana, ou horizontal, como preferirem, corresponde, em igual medida, o aumento da responsabilidade subjetiva frente ao encontro e à surpresa, que deve ser possibilitada pela clínica psicanalítica de orientação lacaniana.
Os avanços das pesquisas científicas na Genética importam ao psicanalista de hoje, como importaram os avanços da Física ao psicanalista de cem anos atrás; a Genética representa, em nossos tempos, para a ciência, o que a Física já representou: o lugar de ponta do avanço científico.
Retomo nessa breve comunicação – e porque me foi solicitado – o que apresentei aos colegas europeus reunidos em Paris, por ocasião das 36 Jornadas de Estudo da Escola da Causa Freudiana, há poucos meses, em 6 de outubro de 2007. Tenho novos resultados, mas a essência da pesquisa é a mesma.
Os fatos clínicos que passo a lhes relatar ocorrem na Universidade de São Paulo, mais precisamente no Centro de Estudos do Genoma Humano, centro de referência científica mundial. Sua diretora, a professora Mayana Zatz, é também a Pró-Reitora científica da Universidade e recebeu o prêmio da UNESCO conferido à melhor cientista da América Latina.
Na origem dessa colaboração aparentemente surrealista entre um guarda-chuva e uma máquina de costura, ou, mais precisamente, entre a psicanálise e a genética, está uma pergunta que fiz à professora Mayana Zatz, no nosso primeiro encontro de trabalho, pergunta baseada no já exposto: – Você acredita que exista uma relação biunívoca entre o genótipo e o fenótipo?
O que eu visava, em termos psicanalíticos, era compreender qual é a consistência, para ela, de seu sujeito suposto saber. Para minha agradável surpresa, sua resposta foi imediata: – Claro que não! Quem lhe disse tamanha besteira?
Como num flash, lembrei-me dos fóruns realizados no Palais de la Mutualité, por Jacques-Alain Miller, sobre a emenda Accoyer; pensei em colegas pedindo asilo a uma pretensa ciência das localizações cerebrais, enfim, todos estes ironicamente notáveis avanços da sociedade de controle com os quais temos nos confrontado. Muitos acreditam nessa « besteira », tal como qualificou a cientista.
Nós criamos um serviço de psicanálise no Centro de Estudos do Genoma Humano, atividade, aparentemente, pioneira no mundo. Devido aos resultados que começamos a publicar, temos sido consultados para a sua reprodução.
A primeira pesquisa que realizamos foi formalizada a partir de um diagnóstico situacional sofre o sofrimento reportado pelos pacientes e pelos geneticistas. Detectamos um novo e verdadeiro vírus do laço social que nós denominamos RC, iniciais de « Resignação e Compaixão ». Resignação dos pacientes, compaixão das famílias. Fomos acostumados a procurar um médico quando sofremos de algo e não quando estamos nos sentindo muito bem. No entanto, um fenômeno típico do nosso tempo, que era antes impensável, é a comunicação, a uma pessoa, de um diagnóstico e prognóstico científicos, anunciando-lhe uma doença futura, da qual ela ainda não sofre e que, freqüentemente, tem um nome estranho, geralmente aterrorizante. Passado um primeiro momento de raiva, quase sempre a pessoa escolhe alienar-se no sujeito-suposto-saber do imaginário social, ou, em outros termos, em um sofrimento prêt-à-porter. Sabemos bem como a sociedade é capaz de produzir sofrimentos e alegrias em modelos prêt-à-porter.
Ao adotar tal atitude, o sujeito deixa a porta aberta a dois problemas. Primeiro, resignando-se, ele antecipa o sofrimento e facilita por esta antecipação o progresso da doença anunciada. Segundo, do lado da família, justaposta à resignação, surge a compaixão que, sob sua face de virtude, esconde o vício da acomodação indiferente, congelando a situação em um dueto dor-piedade. É por que intitulamos nossa pesquisa « Desautorizar o sofrimento », entenda-se, o sofrimento padronizado.
Conseguimos verificar que uma ação psicanalítica era possível com estes pacientes, retirando-lhes a segurança da solução prêt-à-porter e devolvendo-lhes a surpresa do encontro que eles haviam tido em suas vidas com aquele terrível veredicto. Nós entendíamos que nosso « sujeito-suposto-saber », criativo e responsável, traria benefícios a dois aspectos críticos: o momento imediato e o progresso da doença.
Pudemos notar na prática clinica o que Jacques-Alain Miller anunciou ao propor o tema das últimas jornadas da Escola da Causa Freudiana: « Quando trabalha na potência máxima, a psicanálise faz, para um sujeito, vacilar todos os semblantes… (incluindo aqueles da dor, devemos adicionar)…. Isto libera um sinal de abertura, talvez de inventividade ou de criatividade que está na contramão do festim de Baltazar. O que daí emerge, na melhor das hipóteses, é um sinal que diz « Nem tudo está escrito ». Uma objeção ao mestre contemporâneo.
Nem tudo está escrito. Até mesmo quando está escrito no código genético, existe um gap, uma distância entre o escrito, o genótipo que citávamos, e sua expressão, o fenótipo. É a isso, como dissemos, que se chama de « expressão gênica ».
Expliquemos melhor. O genoma humano, ou genoma de uma pessoa, é o conjunto de todos os genes que ela herdou de seus pais. Os genes são seqüências de DNA responsáveis pela codificação das proteínas. Se analisarmos o DNA de uma pessoa, ele será o mesmo em todos os tecidos. Mas, as proteínas são diferentes em cada tecido: por exemplo, nas células do fígado, acharemos as proteínas ou produtos que são essenciais para manter as funções hepáticas. Por isto dizemos que os genes « se expressam » de maneira diferente em cada um dos tecidos.
A expressão dos genes depende também do ambiente. Por exemplo, os genes de um cérebro que foi exposto à educação terão uma expressão diferente daqueles que não o foram. Esta mudança de expressão é « epigenética », pois ela não será passada aos descendentes.
Sabemos também que os « neurotransmissores » são influenciados pelo que chamamos de « ambiente ». Rita Levi Montalcini, que recebeu o prêmio Nobel de medicina, demonstrou que os « neurotransmissores » podem influenciar o sistema imunológico, o que tem um papel importante no desenvolvimento de certas doenças.
Uma das hipóteses de trabalho é então que a psicanálise poderia influenciar a expressão de genes que modulam os « neurotransmissores » e ter um efeito – nada banal – sobre a velocidade de progresso de uma doença neuromuscular, por exemplo.
Por um ano, nós seguimos dezenove pacientes dentre os que solicitaram ser atendidos por um psicanalista no Centro de Estudos do Genoma Humano. Suas doenças eram muito variadas: distrofia muscular de Duchenne, distrofia miotônica de Steinert, distrofia muscular fácio-escápulo-umeral, ataxia espino-cerebelar.
A primeira, e às vezes a segunda sessão de entrevistas, é feita por mim – utilizo o presente em razão da continuidade destes trabalhos, agora aberto também às famílias – na presença da professora Zatz. Estas entrevistas são transmitidas diretamente a uma equipe de psicanalistas do Instituto da Psicanálise Lacaniana, de São Paulo, associado ao Instituto do Campo Freudiano. Elas visam determinar o campo de incidência da separação entre S1 e S2. Citemos o mesmo texto de Jacques-Alain Miller: « Isto define a condição da própria possibilidade do exercício psicanalítico. Para que haja psicanálise é necessário que seja lícito, permitido – e é isso que esbarra nos poderes estabelecidos de outros discursos -, atingir o significante-mestre, fazê-lo cair, revelar sua pretensão ao absoluto, como um semblante, e substituir-lhe pelo que resulta da embreagem do sujeito do inconsciente sobre o corpo, isto é, o que chamamos com Lacan de objeto a. »
Em seguida a estas entrevistas preliminares, que são discutidas com toda a equipe, um dos membros assume a direção do tratamento analítico em sessões semanais. A professora Zatz e eu revemos todos os pacientes a cada três meses.
A adesão ao tratamento foi total. Não houve uma única ausência a qualquer das consultas durante todo o ano e vale lembrar que estas pessoas têm dificuldades de locomoção. Suas mudanças de posição em relação ao gozo foram evidentes, assim como o foi a mudança de posição das famílias em relação ao sentimento de pena. Ainda não temos a possibilidade de saber os efeitos precisos sobre a progressão da expressão da doença.
Essa prática clínica, pouco padronizada, nos ensina muitas coisas – entre outras:
Para terminar, mencionarei o testemunho espontâneo de um paciente, escrito e autorizado por ele, doutor em odontologia, vitima de uma distrofia do tipo cinturas. Escutêmo-lo.
« Desejo relatar a importância do projeto Análise neste momento de minha vida. Ao principiar o projeto, a rápida progressão da distrofia era inerente e visível e esta situação era sofrida e triste. Em uma época não muito distante, eu jogava futebol, andava de bicicleta, nadava, quando, passados meus 33 anos, comecei a sentir dificuldades para subir escadas, para correr, para chutar a bola. As quedas se tornaram cada vez mais freqüentes e ao cair eu feria não só os joelhos, os cotovelos, o nariz e a cabeça, como também meu estado emocional, minha alma. Estas quedas freqüentes me faziam perder a motivação para realizar minhas atividades pessoais e profissionais, eu me tornava cada vez mais assombrado por uma projeção, a de estar cada vez mais próximo de depender de uma cadeira de rodas. De certa maneira estava antecipando o sofrimento. Não sabia mais o que pensar!
Foi após uma dessas quedas que eu viajei para São Paulo,…. contei minha falta de motivação em conseqüência das quedas. Cair para mim era tão desencorajador! Gentilmente a doutora Mayana me convidou a participar do projeto Análise.
Eu sei que a progressão da distrofia é concreta e que suas conseqüências são claras em meu corpo, marcado principalmente pela modificação da força, do tônus e do contorno dos músculos, da qual resultam limitações nos movimentos. Aprendi que a realidade da distrofia não é fixa, que ela pode ser mutável, plástica, flexível e modelável, eu aprendi a fazer dela um detalhe, com o afastamento que se deve… uma analogia interessante é pensar que a distrofia é como uma rede no oceano… se o peixe ficar preso nela, ele morrerá.
Portanto, com esse trabalho no projeto análise, eu aprendi que após o horror do diagnóstico, a rede realmente trava, mas o mar é muito grande e a tarefa é não ficar nela! Assim como na vida, o mar permite criar caminhos diferentes, para ir além da rede. … a distrofia é apenas um detalhe na multiplicidade dos corpos e tratá-la assim é formidável. As quedas hoje em dia não me assustam mais… há várias alternativas para se levantar… o objetivo maior é « desautorizar o sofrimento »
Assim concluímos: a clínica dos objetos a na experiência psicanalítica possibilita ao homem do século XXI de se liberar dos novos Maktoubs, e, em decorrência, de se responsabilizar sobre o osso de sua existência de uma forma renovada e inventiva.