O desenho no avesso do tapete
Impressões de Dorothee Rüdiger
Há momentos, nos quais uma difícil tarefa pode ocasionar uma grande satisfação. É quando o desejo, meio que tortuosamente, encontra seu caminho, de uma maneira bem singular, demonstrando o que é capaz de criar. Estou, nesse exato momento, vivenciando essa situação diante da tarefa de resumir em duas páginas “Um primor de curso” que nos foi dado por Alain Grosrichard como introdução ao Seminário XVII de Jacques Lacan. Se não fosse essa tarefa de grande responsabilidade e o prazer de agasalhar, com palavras, minha leitura do curso, as chateações do dia-a-dia teriam acabado com meu final de semana. Viajei, nesses três dias, com o mapa exposto por Alain Grosrichard sobre as palavras proferidas por Jacques Lacan, para as salas de aula na Faculdade de Direito da Sorbonne; para a masmorra do castelo de Vincennes; para as escadarias do Panthéon, nos momentos de turbulência política do século XVIII, do século XIX e dos anos que se sucederam ao maio de 1968. Provei inúmeros pratos deliciosos durante as refeições que acompanharam o curso. Deixei-me causar em meu desejo como a-sistente pelas palavras pronunciadas em francês e português para fazer parte como leitora da produção de um texto cujas personagens principais eram Freud, Lacan, Diderot, Rousseau, Rimbaud e o Marquês de Sade, companheiros em nossa viagem para conhecer o lugar que ocupo como psicanalista no emaranhado dos laços tecidos pela sociedade. Feito como quem olha para o reverso de um tapete, a posição do analista, e não do mestre, me deixa perceber que há um desenho no tecido do qual “não faço a menor idéia”, para citar as palavras de Jorge Forbes dirigidas a um paciente. Esse “nada entender” a priori é a esperança que posso dar como psicanalista para um mundo globalizado que busca, por todos os meios, entender, explicar, enfim, gozar.
Vamos iniciar nossa viagem com Alain Grosrichard a Paris, Vincennes e até à Floresta Negra para conhecer melhor o desenho no avesso do tapete dos discursos que fazem os laços sociais. Lacan profere seu Seminário XVII, em Paris, na Faculdade de Direito, e em Vincennes num novo campus da Universidade de Paris que foi criado às pressas para aplacar os ânimos dos estudantes revoltosos de 1968 que tinham ali, na periferia, uma espécie de playground para fazer novas experiências acadêmicas, incluindo um curso de psicanálise. Não poderia haver um lugar mais propício para o estudo da psicanálise. Em Vincennes foram encarcerados, num antigo castelo dos reis da França, Diderot e o Marquês de Sade. E ninguém menos que Rousseau encarava percorrer a pé os sete quilômetros de Paris a Vincennes para visitar, nos dias que isso era permitido, seu amigo Diderot. Este foi preso, em 1749, por ter publicado um texto que, até hoje, soa subversivo: “Carta sobre os cegos destinada aos que enxergam”. Cegos, diz Diderot, somos nós que não queremos saber dos furos na ordem da natureza tecendo nosso saber a partir de construções imaginárias. Foi também a caminho de Vincennes que Rousseau teve uma revelação sobre a ciência e a tecnologia: “somos escravos do saber”. Finalmente, é na prisão de Vincennes onde o Marquês de Sade escreve numa tira de papel que enrola no próprio corpo, “Os 120 dias de Sodoma”, obra que trata de uma orgia científica que tem como fim investigar as mais diversas maneiras de satisfação sexual.
Diderot, Rousseau e Sade, que escandalizaram pela ousadia de saber sobre o que não se diz , continuam a nos acompanhar nessa leitura de Alain Grosrichard do Seminário XVII. Lacan nos faz perceber que nossas palavras são apenas signos solitários no imenso céu daquilo que não se capta a não ser por traços parecidos aos que aparecem no quadro negro como, por exemplo, seus matemas dos quatro discursos. Estamos perambulando com esses discursos, feito cachorros, a quatro patas, sem bem entender o que nos ocorre. Somos cegos e presos às cadeias das palavras, estas sempre insuficientes. Como elas, somos acorrentadas à cultura, ao Outro. Não há, como demonstra Lacan, possibilidade de escaparmos dos grilhões dos significantes, de “cairmos fora” da cultura porque, sendo homens e mulheres, somos seres falantes. Mas, se ser “loquente” é uma questão de destino, por outro lado, a maneira como lidamos com a fala, com o incompreensível e com a cegueira é uma questão de postura. Essa postura Lacan traduz em quatro discursos: o discurso do mestre, discurso da histérica, discurso da universidade e discurso do analista. Os quatro discursos têm em comum quatro elementos, ou seja, “S1”, o significante que se destaca que imprime a cada um sua marca; “S2”, o discurso que é construído a partir dessa marca; “$”, o ser humano dividido por não conseguir dizer tudo que vive e percebe; e o objeto “a”, o elo perdido entre a palavra e a coisa, entre o corpo e sua imagem ou, ainda, entre o homem e uma mulher. A relação entre esses quatro elementos dos discursos é sempre virulenta. Como somos seres imersos na cultura, não há harmonia, não há entendimento e paz de espírito, a não ser quando voltarmos aos braços da natureza, na hora da morte, como “O adormecido no vale”, de Rimbaud.
Lendo, por sua vez, o Seminário XVII pelo “avesso do tapete”, Alain Grosrichard nos apresenta “Jacques, o fatalista”, uma obra literária de Diderot, na qual aparece o discurso do mestre. Um senhor empreende com seu serviçal uma viagem, durante a qual o mestre indaga seu “sujeito” sobre suas aventuras amorosas. Quem tem o saber sobre as mulheres e o gozo sexual é o serviçal. O mestre, para poder gozar, extrai do serviçal esse saber, assim como o capitalista extrai do operário a mais-valia. Impossível para os dois é escapar da ditadura das palavras que dão o sentido da conversa. Quando Jacques chega a tocar o órgão sexual de uma mulher, espanta-se: “não há nada!”. O nada, a falta, o vazio, causa o fantasma que os homens presos à lei do significante, segundo a qual sempre deve haver algo que ocupa um lugar, percebem como castração. Esse “algo que falta”, o mestre procura tampar com sua verdade e embrulhar em seu discurso para negar a insuficiência das palavras. O discurso do mestre é o discurso de nosso inconsciente. Sujeitos que somos à cultura, não agimos como James Bond, a não ser sob o comando de “Sua Majestade” o significante mestre. Tecemos o saber e sofremos as consequências da castração. O que ganhamos com isso é um resto, causa para um desejo motor da cultura.
Não há mais senhores e nem escravos, ao menos como antigamente, nos tempos de Rousseau e Diderot. O discurso do mestre muda constantemente de figura, tendo como seu avesso a histeria da revolução e a devassidão do gozo, da qual nos narra o Marquês de Sade. Pode ser encontrado no discurso do capitalista, mestre sem rosto capaz de extorquir mais-valia do proletário para construir, hoje, uma economia globalizada, quase universal, do gozo de objetos, latusas, como diria Lacan. Latusas são objetos substitutos destinados a satisfazer nossos desejos, nem que seja somente no instante da compra. O discurso do mestre toma, ainda, as feições do discurso universitário, que faz dos estudantes “a-studantes”, consumidores de um saber, produtores de créditos que futuramente servirão para determinar o lugar de cada um no capitalismo, na escala da exploração invisível. Histericamente, como diz Lacan no seu Seminário XVII aos estudantes revoltosos de Paris e de Vincennes, os alunos se levantam contra seus mestres, na tentativa de reinar sobre estes, para depois encontrar um novo mestre. Maio de 1968, de fato, tornou-se história e os jovens em movimento, em Paris, Berlim, Amsterdam e São Paulo, encontraram no hipercapitalismo globalizado seu novo e grande mestre! Esse mestre faz pacto com a ciência em busca constante de novas soluções para os problemas criados pela civilização global. O discurso da ciência reina, feito a histérica, sobre o mestre. Promete a felicidade da relação sexual, desde os tempos das “Cartas Persas” de Montesquieu e das “Jóias Indiscretas” de Diderot, até os nossos tempos, nos quais o saber científico é veiculado nas revistas que vendem roupas, bijous e perfumes a um público ávido de satisfação.
Resta o discurso do analista que coloca no lugar do agente a causa do desejo, o misterioso objeto “a”, perdido pela castração que sofremos por sermos falantes. Desde crianças somos marcados, açoitados, pelos pais e pela cultura que nos empurra até a morte em busca da felicidade do objeto perdido. Na tentativa de recuperar o que perdemos, repetimos as cenas que nos marcaram, expomos nossa vergonha, gozamos até chegar a hora da verdade, das cartas na mesa, a hora de mostrarmos o rosto. Esse momento pode ser o encontro com o analista: a hora da vergonha total. Nessa hora há chances de transformarmos a marca da vergonha num traço que deixa cada um de nós único e eterno no mundo. Basta inventar. Quanto a mim, agradeço à oportunidade da autoria desse pequeno texto, que, com certeza, salvou meu final de semana e também minha honra.
São Paulo, 8 de março de 2010
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